16 de setembro de 2010

Monstros

“And when he came to the place
where the wild things are
they roared their terrible roars
and gnashed their terrible teeth
and rolled their terrible eyes
and showed their terrible claws”
M. Sendak. Where the Wild Things Are


Porque nós éramos novos demais e não sabíamos muito bem as regras do jogo, nem que jogo era mesmo. Então a gente sempre acabava correndo, assim sem direção, e se batendo. Por acaso e de propósito. Pulando em cima, pra agarrar as costas, grudar nos braços, chutar as panturrilhas, derrubar, voar pra cima com o punho fechado, a mão aberta, segurar na cara e morder o pescoço, morder o rosto todo e arrancar um pedaço do lábio. Porque não sabíamos as regras do jogo, nossos beijos eram mordidas. Mas éramos novos. Novos e correndo pela grama e subindo na árvore e nos escondendo no meio do mato, com desculpas esfarrapadas e as bermudas ainda mais. Descalços e suados, de tarde a gente deitava na grama olhando o céu escurecer e brigava mais um pouco. Era instinto. Era natural. Era uma vontade tremenda que a gente ainda não sabia colocar nas palavras. Éramos novos demais. E brincávamos de gente grande no seu quarto com os seus pais dormindo do outro lado do corredor. Eu nem sei como ninguém acordava, porque a gente se batia, se debatia e gritava. Gritava muito. Ou era só na minha cabeça. E em silêncio escorregávamos as mãos pra dentro do pijama pra descobrir como o corpo esquenta diferente. Eu gostava do seu cheiro. E a gente sempre acabava brigando. Brincando de brigar e brigando de verdade. Sempre começava brigando. Por causa dessa vontade enorme e sem jeito de ocupar o mesmo lugar, a gente se empurrava e se batia até que as mãos esbarrassem nos lugares certos e a gente risse, meio sem jeito, meio culpado, e muito com gosto. No campo, no banho, no seu quarto, na minha garagem, na chácara, na piscina e em qualquer lugar que aparecesse. A gente era muito novo pra se importar. Então a gente se batia. De verdade. De deixar roxo. De ir parar no hospital. De enfaixar, engessar e assinar por cima. A gente mordia pra arrancar pedaço. Do que é que a sua tia chamava a gente? Incivilizados... mas depois a gente aprendeu mais regras. Se vestiu melhor e foi descobrir como é tomar vinho e comer em restaurante caro sem fazer ninguém passar vergonha. E a gente já tinha parado de levar quem pudesse passar vergonha. Só nós dois. Pra depois voltar pro apartamento e parecia que nada tinha mudado. Eu te batia forte. Você me jogava na parede. A gente quebrou três camas, tivemos que nos mudar porque os vizinhos reclamavam, mas a gente sabia as regras do jogo. Do nosso jogo. E a gente brincava de brigar e brigava pra brincar. E estava junto. O tempo todo. Rolando no chão e sempre com alguma coisa quebrada. Uma mão, uns pratos, o som da sala. E ai eu quebrei seus CDs. Você quebrou meu computador. Eu rasguei suas roupas. Você me meu um soco e um beijo, disse que me amava, arrebentou a fechadura e foi embora sem levar sua chave. E eu não sabia mais as regras do jogo. A gente esperou. A gente se viu de novo pra separar o que era de quem. Quem ficava com o braço quebrado, quem arrebentava o supercílio, cada hematoma no seu lugar na nossa conversa. Porque a gente nunca tinha aprendido a brincar de outro jeito. A brigar de outro jeito. Mordíamos cada dia mais forte. Acho que pra ver quem agüentava mais. Eu ainda tenho as marcas. Era pra rasgar, mesmo. Sem saber as regras do jogo, fomos mordendo até não sobrar nada. Dos corações. Os dois de corações mordidos. Devorados. Sem assar nem nada. Eu arrancava seu coração com as mãos e comia na sua frente, e era pra ver se te machucava mais. Porque eu não sabia as regras do jogo. A gente nunca soube brincar.



“Oh please don’t go-
we’ll eat you up – we love you so! ”
M. Sendak. Where the Wild Things Are





Henrique Rochelle

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