15 de março de 2011

De Brincadeira

Saiu correndo pra contar pra mãe. Quebrara outro. O primeiro esse ano. Não que o ano fosse longo, já, mas ainda sim. Nunca saberia exatamente se era ele crescendo ou os brinquedos que eram menos resistentes. Lembrava de tomar sorvete, e da primeira vez que não deixou cair nenhuma gota. O orgulho bobo de, de repente, se sentir grande, adulto e capaz. Sem saber que eram só suas mãos, sua boca. Articulações. Como bebês aprendendo a falar o R. Por muito tempo se orgulhou de não derrubar seu sorvete e de não quebrar copos. Agora que achava que teria algo a mais, se decepcionou. Ficou quase um ano sem quebrar nenhum brinquedo, mas agora olhava pra cama e via o homenzinho todo despedaçado. E partes faltando. Teriam corrido pra baixo do armário? Alguém acharia quando varressem. Precisava contar para a mãe. Sempre informava de coisas quebradas. Era um pacto. Fazia a quebra um pouco menos pior. Menos machucada. Esperou um pouco. Sorriu. Não que estivesse feliz, mas sabia lidar com a situação. Era reconfortante saber o que fazer ao destruir seu homenzinho. Esperou só um pouco, verificando o protocolo. Pensando nas outras vezes, no que era diferente nessa e no que teria que fazer. Ainda em dúvida, deixou tudo ali e saiu do quarto pra avisar a mãe. Ela não estava em casa. Ele estava sozinho e nem se lembrava de ter essa liberdade. Se sentiu grande, adulto e capaz, por um tempo. Depois só sozinho. E sem saber o que fazer se não fosse contar pra alguém, voltou pra cama pra analisar o estrago. Ele era grande. Adulto e capaz. Consertar? Não era seu forte. Tinha essa mania horrível de forçar a brincadeira. Aventuras demais. Seu homenzinho nunca era herói o bastante. Sabia voar? Que voasse mais rápido! Enfrentasse as distâncias enormes e chegasse ao seu destino para salvar o seu amor, a cidade e o universo. Se desdobrasse. Se esticasse e envolvesse e protegesse por todos os lados, contra todas as coisas, o tempo todo. De repente, um clique. E ele arrebentou. Virou o rosto e nem viu as partes do homenzinho voando e se esparramando pela cama e pelo quarto. Olhou melhor o estrago. Não parecia tão arrebentado. Os outros nunca parecem tão machucados. Sentou. Respirou fundo. Pegou um bracinho e olhou a parte do encaixe. Examinou. Tentou. Empurrou, apertou, torceu. Juntou. Uma a uma, as partes. Achou pedaços no travesseiro, embaixo da cama, embaixo do armário. E foi juntando. Montando. Mas faltava algo. Sempre faltava alguma coisa que não estava naquele quarto. Quando o homenzinho estourou, alguma coisa escapou. Por baixo da porta, descendo a escada, correndo pela garagem, através do portão, pro meio da rua e pegando carona pra longe. Ai já não se sentia. Grande, adulto, capaz. Mas como já tinham decidido que ele seria (grande, adulto, capaz) nunca ganhou outro brinquedo. Teria que aprender outras brincadeiras. Queria chorar pra mãe e pedir outro. Só mais uma chance de não ser grande, nem adulto, nem capaz, e ter gosto por errar e ir contar. Mas ela não voltou mais. Ele ficou com a lembrança. Dela. Do seu homenzinho também. E sempre que tomava sorvete, dava risada sozinho por não derrubar. Grande. Adulto e capaz. Tentou outras vezes consertar seu brinquedo, mas já era adulto o bastante para saber que uma parte dele tinha ido embora. E nem sabia que parte era aquela. E era ela que completava. Fazia seu homenzinho perfeito e inteiro. Prendia o resto e deixava ele se mover sem soltar todo, sem desmanchar. Nunca mais se sentiu grande além de quando tomava sorvete. E sempre olhava pelos cantos. Procurando o não-sei-o-que que faria seu brinquedo inteiro de novo.





Henrique Rochelle