29 de agosto de 2010

Caligrafia

Soube então que voltaria a escrever cartas. Era algo de seu. Aquela caligrafia meio torta, forçosa, tentando dizer por entre as palavras que ele era alguém, mesmo que inventado. E lutando contra os remédios, porque já era hora de dormir, meio que duvidava das teclas. Todas tão padrão, todas tão iguais. Ocupou seis dias buscando outras fontes, mas nada ficava com seu jeito, seu toque, seu traço. E queria. Sua marca e só sua, por toda parte de todos os seus escritos que ele nem tinha mais para quem escrever. Dois dias antes, mandara mensagens para todos os outros, ou quase. E quase nenhuma resposta. Mas nenhuma promessa. Mais nenhum consolo pra esperar que quando fosse de dia de novo e ele já não sentisse tão forte o amortecido dos seus comprimidos, ele pudesse passar algum tempo esperando alguma coisa acontecer. Era só mais uma tarde, mais um dia, mais um livro. Queria ler contos, porque precisava urgentemente conseguir acabar histórias uma vez que começadas. Histórias incompletas, já tinha muitas. Amontoando debaixo do lençol. Sim, ele dormia numa cama lotada de memórias. Memórias escritas, memórias estufadas, memórias acolchoadas. Cobrindo, abraçando, rabiscando, e machucando seus olhos, como o zíper na ponta da capa do travesseiro. Escreveu em seu colchão, num ponto escondido. Mas achava que ninguém veria, então sua frase não existia. Por isso mesmo não a escreveu. Já não sabia. Passava das oito, tinha tomado seus remédios. Não estava apto a dirigir, não estava apto a cuidar de crianças, de panelas no fogo, do barulho dos vizinhos. Não estava apto à sua própria vida, que ele ia sentindo assim, amassada sobre o rosto, como uma camada a mais de qualquer coisa que fosse, amortecendo o impacto, o desejo, o sentido e a sua capacidade de andar, de manter as paredes no lugar, de não atravessar vidros, não cair de escadas, não se jogar de cima de um prédio. Desistira das janelas havia muito tempo. Mas agora, de repente, podia se enganar de novo. Subir e tomar uma dose cinqüenta e três vezes maior do que devia e sentir aquilo tudo passando. Tudo passaria, tinha certeza, porque ele mesmo passava, assim, sob o efeito dos remédios. Menos ele e mais quem quer que fosse e ele não sabia, não conhecia. Não tinha desejos compatíveis. Jantaria gelatina, mas quem era ele sem aquela vontade estranha de comer pipocas às duas da manhã? Não era ele, porque ele se deitava todo dia e não se incomodava com a cama estar sem mais ninguém. Era só a cama. Era só o fim do dia. E por dentro, escurecendo e dominando o mundo, ele sentia seu estômago prestes a explodir. Preto. Vomitaria em nanquim todos os versos que já escrevera, que engolira, que esperara, que guardara para aquele alguém que merecesse e que nunca chegou. Ninguém voltaria pro seu quarto. Ninguém o encontraria ali, morto no terraço, uma poça de nanquim, se esforçando ao máximo para ter a sua caligrafia de volta. Soube então que não voltaria a escrever cartas. Não havia mais destinatários. Não havia remetente.

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